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Terceirização: o canto da sereia do momento

Por Gerson Alves Lettres

O noticiário retrata supostos “avanços” na legislação trabalhista, dentre os quais a permissão da terceirização da atividade-fim, até então fortemente rechaçada/contestada pelo Judiciário Trabalhista. No que toca à Administração Pública, inúmeros questionamentos surgiram nos últimos dias, sendo escassas as repostas e abundantes as (in)certezas quanto à melhoria do serviço público com tal possibilidade criada pelo legislativo.

Todavia, antes de adentrar no tema cerne do presente artigo, convém situar o leitor quanto à terceirização.

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, apresenta em seus artigos 2 e 3 a definição de empregador e empregado, sujeitos da relação de trabalho, in verbis:

Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Quando a prestação de serviço envolve única e exclusivamente os dois sujeitos acima, diz-se que a relação de trabalho é direta. Isto pois, o empregador contrata o empregado, o qual será responsável por realizar suas tarefas mediante a contraprestação (salário) do empregador.

Todavia, é possível que tal relação ocorra através de um intermediário (prestador de serviço). Neste caso, a relação de trabalho seria triangular e indireta. O novo componente seria a empresa prestadora de serviço, responsável por intermediar a relação entre o empregador (tomador de serviço) e o trabalhador, o qual teria vínculo com a empresa prestadora e não com o empregador. Essa é a denominada terceirização.

Pois bem, inicialmente, a dita terceirização poderia ocorrer apenas para as atividades-meio da empresa, sendo vedada a sua utilização para atividades-fim. Diz-se que uma atividade é fim de uma empresa, quando esta é a pedra fundamental para o desenvolvimento, manutenção e crescimento desta empresa. Já as atividades meio, seriam todas aquelas responsáveis pelo suporte para a realização da atividade fim. Assim, exemplificativamente, a atividade-fim de uma CLÍNICA DE RADIOLOGIA é a realização de exames de seus clientes, enquanto seriam atividades meio a limpeza, organização e segurança, por exemplo.

Por algumas décadas restou sedimentado o entendimento acima narrado de que a terceirização somente poderia ocorrer para as atividades-meio. Ou seja, o dono (empregador) da clínica médica só poderia contratar por intermédio de uma tomadora de serviço os trabalhadores relacionados a qualquer outra área que não fosse o tratamento dos pacientes da sua clínica. Tal entendimento restou firmado inclusive pela Súmula 331 do TST¹ cujos trechos ligados ao tema destaco abaixo:

Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
(…) IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora.
A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Pois bem, como dito anteriormente, por diversos anos imperou o disposto no texto sumular. Todavia, com a recente alteração proporcionada pelo atual governo federal (Lei 13.429/2017), diversos setores passaram a entender que a terceirização poderia ser realizada, inclusive, para as atividades-fim. Essa visão decorre da intepretação extensiva do §3º do art. 9 da referida Lei. Vejamos o texto controverso:

§ 3o O contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços

Como se percebe da leitura da oração acima, o texto legal é aplicável apenas ao trabalho temporário, hipótese na qual o empregador tem a permissão para contratar empresa prestadora de serviço por um determinado período sem que tal contratação crie vínculo entre a contratante (tomadora de serviço) e o trabalhador.

A expressão que inicialmente causou e seguirá causando celeuma foi a que permite a contratação para atividades-fim. Inicialmente acreditou-se que o texto seria uma inovação quanto à terceirização. Posteriormente, novos entendimentos surgiram dando conta de que a aplicação do §3º se restringe de fato ao trabalho temporário, em nada alterando o entendimento consolidado quanto à não terceirização da atividade-fim.

As intepretações em ambos os casos parecem corretas. Isto pois, ao permitir que a contratação para trabalho temporário de atividade-fim é possível, o legislador nada mais fez que admitir a terceirização da atividade-fim, ainda que tal fato ocorra por um curto período de tempo. Não obstante a discussão, a qual certamente prosseguirá pelos próximos meses e anos, cabe destacar o papel da Administração Pública frente a contratação de trabalhadores através de empresa prestadora de serviço (terceirizada).

Que a contratação por terceirizadas não gera vínculo, isto já se sabe, conforme item II da súmula acima colacionada. Porém, o que ocorre quando a empresa prestadora de serviço não respeita o direito do trabalhador?

A resposta, embora pareça clara, frente ao disposto nos itens IV e V, da Súmula 331, foi objeto de Recurso Extraordinário (RExt 760.931) julgado pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, o qual, por apertado escore (6×5), entendeu que a Administração Pública não é responsável pelo pagamento das verbas trabalhistas não pagas pela empresa prestadora de serviço.

A votação se encontrava empatada com 5 votos para cada lado, sendo desempatada, casualmente a favor da Administração, pelo Ministro recentemente nomeado, Alexandre de Moraes. Tal julgamento diverge frontalmente do entendimento consolidado na Justiça do Trabalho, reforçado por inúmeros julgados, nos quais se tinha como solidária a responsabilidade da Administração frente o inadimplemento das obrigações trabalhistas da empresa prestadora de serviço. Sobre tal ponto, a ministra relatora do processo, Rosa Weber, magistrada oriunda da Justiça Trabalhista, reiterou a jurisprudência anterior, no sentido de que a administração deveria realizar o pagamento, pois cabe a esta o dever de fiscalizar as relações de trabalho, incluindo a relação da empresa contratada e os trabalhadores.

No entanto, o entendimento vencedor, de relatoria do Ministro Luiz Fux, foi no sentido de que a Lei de Licitações – dispositivo que estabeleceu a possibilidade da terceirização para Administração Pública – previu apenas a responsabilidade solidária do poder público para os encargos previdenciários, sendo silente o legislador quanto às verbas trabalhistas.

Coincidentemente – ou não, o voto de desempate veio justamente do Ministro recentemente nomeado em favor do Governo, desrespeitando não só a jurisprudência firmada pela Justiça do Trabalho, mas, principalmente, o trabalhador contratado pela empresa prestadora de serviço, o qual, a partir de agora, perderá qualquer garantia de que possa receber sua contrapartida no caso do inadimplemento da empresa prestadora de Serviço, poupando, assim, alguns milhares de milhões de reais dos cofres públicos. O capital, as contas públicas, falam mais alto do que os direitos sociais. Para um ministro até então filiado a um partido político que organicamente defende uma redução do Estado e a menor intervenção deste no mercado, não é surpreendente sua posição.

É importante que os trabalhadores se deem conta de que a terceirização é mais do que nunca, uma precarização ao extremo do direito do trabalho, colocando-o cada vez mais numa posição de extrema vulnerabilidade, com reflexos direitos em outros setores importantes da proteção do trabalhador, principalmente o custeio da seguridade social.

Por fim, lembramos a passagem da Odisseia, de Homero, em que uma deusa orienta Ulisses para que seus companheiros coloquem ceras nos ouvidos para não escutar os (en)cantos das sereias e, enfeitiçados, se joguem ao mar. Tal deusa, Circe, orienta que Ulisses seja amarrado pelos seus parceiros para não se alçar ao mar, sendo o único a escutar o canto das sereias, podendo, assim, seguir sua viagem triunfante rumo à sua casa.

Dito isto, sugerimos aos trabalhadores que não se deixem enfeitiçar pelos encantos da terceirização, jogando-se ao “mar turvo e perigoso”. Não é necessário “colocar cera nos ouvidos”, mas sim, ser astuto como Ulisses, ouvindo tudo que é dito sobre o assunto, porém sem se deixar levar pelo canto da mais nova sereia de Brasília.

Abril, 2017.

¹ Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

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